Monday, February 26, 2007

miedos

Ela sentou-se na frente do computador do seu trabalho. Por falta de algo mais urgente para fazer, começou a divagar sobre os primeiros dias que passou na tal da pequena cidade onde agora se encontra. De todos os episódios, um saltou aos olhou, se balançou no trapézio da mente e gritou: aqui há uma historia!


* * *


Há medos que estão tão intrincados no nosso inconsciente que não há explicação, não há racionalidade, não há tempo nem idade capaz de curar. Ela tem dois: um, é não ter amigos; o outro, são agulhas.

Naquela manhã de agosto ela enfrentou seus dois maiores medos ao mesmo tempo. Na fila para tirar sangue e tomar vacina, ela se perguntava como as enfermeiras americanas reagiriam diante do escandalo iminente, que já dava seus primeiros sinais na beira da garganta. Tremia ainda mais só de pensar que não seria capaz de se controlar. “Deixa de ser medrosa, menina, num instante passa! Que coragem é essa que você tem de vir até aqui sozinha se não consegue nem olhar para uma agulha?”.

Se encheu de coragem e entrou na salinha. Uma enfermeira gorducha, loira e sorridente lhe perguntou como estava. “Bem”, mentiu. A enfermeira sorriu de novo, e começou a preparar a agulha.

A agulha. Bastou a visão do objeto para que a habitual tremedeira se acentuasse de súbito, e para que um suor frio lhe molhasse as pontas dos dedos. Ela olhou de relance para a fila de estudantes internacionais além da porta, mas nenhum dos olhinhos puxados ou das cabeças loiras lhe pareceu familiar. Se deu conta de que não conhecia ninguém, e desejou do fundo do coração que um, somente um de seus amigos estivesse ali para lhe dar qualquer força possível.

A enfermeira segurou seu braço e seu deu conta da tremedeira. Ela não esperou a pregunta e já foi logo se explicando, numa enxurrada desconexa. “Sabe o que é, moça, é que eu tenho medo, muito medo, desde pequena, desde sempre, não sei explicar, não sei, você me entende? É que eu não quero, dói, e..”

“Você quer segurar na minha mão?”

Uma lágrima já ia despontando no canto dos olhos quando a voz com sotaque mexicano soou atrás dela. Era um dos meninos voluntários, que ela havia conhecido no dia anterior. Por pura boa vontade, ou talvez por saber na pele o que são os primeiros dias numa nova vida, eles se oferecem para ajudar de qualquer maneira os novatos.

“Por favor..” Ela respondeu ainda com a lágrima no canto dos olhos. E segurou tão forte, mas tão forte, que ele deve ter sentido mais dor do que ela.

Quando a enfermeira terminou, ela se levantou ainda meio zonza.. Olhou pro voluntário com o rosto pálido, meio envergonhada e sem saber o que dizer. “Não precisa dizer nada”, ele retrucou. E sorriu.

Naquele dia ela enfrentou as agulhas e ganhou um irmão.



* * *


[Tienen miedo de pedir y miedo de callar..
Miedo que da miedo del miedo que da!]

Wednesday, February 21, 2007

despertar

Ela acordou, mas não abriu os olhos. Sentia a cabeça girar levemente, e por isso sabia que a noite anterior havia sido boa. “Que dia é hoje? Hmm.. Domingo!” Se virou na cama e decidiu ficar mais um pouco.

Mas fazia calor. Um calor abafado e insuportável. Tentou atirar a colcha da cama, e então se deu conta de que a colcha já não estava lá. “Eita cidade quente!”, blasfemou para si mesma.

E ficou esperando de olhos fechados que algum dos sons tão familiares lhe chegasse aos ouvidos, fosse o barulho das panelas que já estavam adiantadas na preparação almoço, a discussão dos irmãos pelo computador, o barulho da corrida que o pai assistia na TV ou a voz irritante e repetitiva do vendedor na feira dominical de carros.

Mas a casa era silêncio.

Desconfiada de que algo não estava certo, ela abriu os olhos. E mirou um quarto que não era o seu. Ou.. Era?

Era. Se deu conta então que por algum capricho da mente, acordou julgando estar de volta à sua casa distante, quando na verdade ainda estava na boa e velha cidadezinha no meio do mundo, onde havia vindo parar por conta e escolha própria.

Olhou pela janela e viu que havia neve no quintal. Ou algo dela, o pouco que restou de nevasca da quarta-ferira passada, quando completara suas 20 primaveras de vida. O domingo estava bonito, o céu sorria azul, e estivesse ela no Brasil quem sabe se (des)vestisse e fosse à praia.

Virou-se na cama novamente, deixando a mente vagar sem compromisso pelas memórias dos últimos seis meses. Seis meses.. Tanta coisa em tão pouco tempo.

Despertou. E decidiu que era hora de voltar a contar a sua própria história.

Wednesday, August 02, 2006

na véspera

Até dois meses atrás, ela viveu na tentativa de diminuir o ritmo das horas e de adiar a despedida. Vivia cada minuto com uma delicadeza e uma certeza que quase faziam o tempo parar. Tirava fotografias mentais: gravava um rosto, uma voz, uma cena, uma sensação. Gravava com o cuidado do mais impecável dos cineastas. Slow motion. E então, quando ele se foi, ela inverteu o jogo. Passou a viver adiantado.

[O tempo passa de um jeito estranho quando a gente deseja deseperadamente que ele passe. Passa sem sentir. A gente deseja tanto o próximo mês, a próxima semana, o próximo dia, a próxima hora.. Que acaba esquecendo de viver o agora.]

Agora, quase chegada a hora, ela se pergunta por onde andou nesses 60 dias. Não sabe se fez tudo o que deveria fazer, visitou os lugares que desejava ter visitado, abraçou as pessoas que gostaria de ter abraçado e disse as coisas que precisavam ser ditas. Ela não sabe nem mesmo se sabe o que está fazendo.

Anestesia.
Dois meses de anestesia.

Ela senta em frente ao computador, olha a varanda, revê as fotos, remexe na mala. Não, não lhe parece que está indo embora do telhado antigo. Não lhe parece nem mesmo que o telhado é antigo. O telhado que ela tanto quis largar, agora lhe parece adorável..

[Nostalgia é uma coisa que cega. Nos faz deixar de ver as coisas ruins e só nos permite contemplar as maravilhas. Doce miragem...]

Ela pensa. Em tantas pessoas e tantos lugares. Em mil coisas.
Mas não funciona.
O filme continua a adiantar.
Anestesia.

Monday, June 26, 2006

cartões postais

As cartas sempre foram a sua mais antiquada paixão. As longas cartas: rabiscadas, manchadas, amassadas, escritas com toda a calma e a paciência de alguém que parou por uma hora só para pensar no que dizer. Sempre lhe pareceu que as cartas foram destinadas às grandes declarações e aos grandes pensamentos.

Até aquela noite em que entregaram, em meio às (não tão desejadas) cartas de cobrança e (pouquíssimo interessantes) propagandas duvidosas, três cartões postais.

Ela passou meia hora admirando a imagens. Leu e releu dezenas de vezes as mensagens escritas no verso: curtas, e ainda assim cheias de significado. Entendeu, então, que as mais verdadeiras declarações não precisavam de várias páginas para serem escritas e que não eram necessárias horas a fio para se dizer as coisas realmente importantes.

Bastava saber que, ao visitar um lugar bonito, alguém pensou em você. Ele poderia ter pensado em dezenas de coisas. Mas pensou em você.

Thursday, June 22, 2006

e assim os dias vão passando

O grande problema da distância é que ela causa insegurança.

Dia 1: Checa e-mail. Nada. Tudo bem. Espera. Checa de novo. Nenhuma mensagem nova. Ok, orkut. Scrap da amiga, do primo e um vírus da nova moda. Em suma: nada. De novo. Quem sabe seja hora de dormir..
Dia 2: Email. 3 mensagens novas. Felicidade. 3 spams. Infelicidade. Paciência. E se.. E se.. Esquece.
Dia 3: Orkut-Skype-Fotolog-Email-Orkut-Fotolog-Email-Skype-Email. E se ele tiver me esquecido? Ansiedade.
Dia 4: Desiste de checar o email. Pára com isso, uma hora chega, você sabe. Mas, já são 7 e meia da noite. Já não é tarde demais para esperar alguma coisa? Tristeza. Tanta que nem dá pra escutar direito o telefone tocando. Essa droga desse telefone que só toca nas horas erradas! Enfia a cara no travesseiro.

- Eeeeeeeei!
- Que é?
- É ele no telefone!

Ela corre pelo corredor e derruba a cadeira na passagem.

- Alô?
- Oi..

Foi como um banho de água morna quando se está morrendo de frio. E mesmo depois de falar, de rir e de desligar o telefone, ainda resta aquele aperto leve no peito (como quando a gente se apaixona pela primeira vez e cada sorriso, cada palavra e cada telefonema tem um significado único e especial).

No fim, a distância também faz com que a gente dê mais valor a essas pequenas coisas que, no corre-corre do vida, passam quase sempre despercebidas. E quanto a saudade... Bem, já diria o cantor: saudade é melhor do que caminhar vazio.

Saturday, June 03, 2006

um sorriso de despedida

O som do aeroporto já havia anunciado a última chamada quando o grupo chegou ao portão de embarque. Ela ficou olhando ele se despedir da família e dos amigos, um por um, e esperando a hora de receber o seu último abraço. (Poucos abraços passam assim, em câmera lenta.)

Ainda que as pessoas no saguão falassem todas ao mesmo tempo e buscassem de uma forma ou outra atrair sua atenção, ela sempre virava um pouco os olhos na esperança de ver se ele ainda estava ali. Primeiro em uma fila, depois em outra.. Quando enfim chegou a hora de ir, ele virou-se e estendeu o braço em um aceno. Ela sorriu e ficou nas pontas dos pés para devolver o gesto. E então ele finalmente saiu da vista.

Embora ela fosse toda lágrimas por dentro, a última imagem que ele iria carregar era a de seu sorriso. Isso a fez feliz.

Tuesday, May 16, 2006

insônia

- Você não dorme por que não quer. É consciente.

E ela olhou para a janela do quarto, mas seu olhar parou na tela. Parou nos contornos da tela escura contra o céu de fim de tarde. Ela pensou em tudo o que poderia dizer, em todas as coisas que bagunçavam seu estômago e sua cabeça e em por quê, de fato, já não podia mais dormir. Pensou, pensou, encheu-se de lágrimas nos cantos dos olhos e não disse nada. Apenas se envolveu num abraço forte, fechou os olhos e esperou o quarto escurecer devagar à medida que a noite chegava.

Não dormiu. Ainda não sabia dormir com aquele medo que nem um abraço forte era capaz de afastar.